quinta-feira, 5 de maio de 2011

Suprimir recursos e garantias não resolve morosidade

Há um rançoso mantra judiciário, nascido no núcleo mais burocrático da magistratura, especialmente naquele da cúpula dos tribunais superiores, que martela se hospedarem nos recursos manejados pelas partes todos os males da Justiça brasileira. Carrega-lhe toda responsabilidade pela morosidade do Poder Judiciário e encara o sagrado direito de revisão dos julgamentos em segundo grau como mero instrumento de que se servem as partes (e aí se esquecem de incluir o Estado, disparado o maior cliente dos Pretórios) para procrastinarem o julgamento final da demanda. Credita também às apelações dos cidadãos que, cônscios da falibilidade humana, não se conformam com julgamento único, de um só homem (ou mulher), em grau inferior e por isso recorrem pleiteando a reapreciação do caso, a tão decantada impunidade nacional. Apregoa que os juízes brasileiros, especialmente os da primeira instância, que se acham no estágio inicial da carreira, deveriam ser mais prestigiados, pois, afinal, teriam preparo suficiente para promover Justiça, e suas decisões só excepcionalmente deveriam se submeter à revisão dos tribunais. Concepção, sem dúvida, autoritária.

Passando desse discurso à prática, os tribunais passaram a de tudo fazer para evitar julgar recursos. Declararam guerra às apelações e, de modo específico, aos recursos não-ordinários, que restaram demonizados no ambiente leigo. As cortes não querem mais eliminar os litígios pelo julgamento com aplicação da lei, mas tudo têm feito para matar os processos que os veiculam. Qualquer falha na formação física dos autos, por mais singela e passível de conserto que seja, mesmo que gerada por lapso de funcionário do próprio Judiciário, passou a ser motivo suficiente para não se conhecer de um recurso, ignorá-lo. Até mesmo os protocolados por antecipação, ou seja, antes do início formal do prazo que a lei assina, são recusados, pois são considerados fora do prazo. Em outra vertente, entregaram-se a julgar — quando se dispõem a julgar — recursos em bloco, aos milhares, de uma única vez, desconsiderando teses peculiares e especificidades de cada situação vertida nos autos. Deram-se, também, para condenar as partes ao fundamento de litigância de má-fé quando entendem serem pretensamente inconsistentes seus reclamos, os quais não estariam a seguir a linha jurisprudencial dos tribunais. Procura-se inibir o sagrado direito de recorrer com a ameaça de sanção econômica. A opressão não está apenas voltada contra os advogados, meros representantes das partes, mas aos cidadãos, que vêem agigantar-se a possibilidade de se tornarem vítimas de irreparáveis erros judiciários, máxime nestes tempos em que o ensino superior já não é o mesmo.

Nessa toada, elogiam-se os projetos dos novos códigos de processo por conferirem amplos, gerais e irrestritos poderes aos juízes de primeira instância, tolhendo o efeito suspensivo da apelação, fazendo com que sentenças possam ser imediatamente executadas (se contiverem erros, isso significa que o erro terá eficácia imediata). A última investida foi a proposta do presidente do STF de nova modificação da Constituição para se dificultar ainda mais a subida de recursos às cortes superiores. Mas, se as cortes superiores existem exatamente para reexaminar as causas em grau superior, qual seria então a sua ocupação com a eliminação dos recursos que satanizam? Uma jurisdição de elite, voltada para as “grandes causas” e as governamentais? E o povo?

A alegada ambiguidade segurança/rapidez dos processos judiciais não é nova, nem exclusiva do Brasil. O direito ao recurso, entretanto, é uma conquista da sociedade moderna, garantia de todos, contra erros e arbitrariedades cometidos por magistrados. Tome-se o eloquente — e lamentavelmente crescente — exemplo da censura à imprensa através de decisão judiciária no nosso país. Alguns juízes e tribunais têm, através de seus éditos e em certos temas, censurado a imprensa que a Constituição quer livre, sobrepairante a qualquer outro valor (a responsabilidade pelos erros de imprensa deve vir a posteriori). Como se impedir o recurso de urgência que visa a desconstituir tamanho autoritarismo contra a liberdade de expressão?

Para quem crê que são os recursos judiciais a causa única do retardo no advento da decisão final, é experimentar uma injustiça e restar convicto de que alguma demora se mostra altamente justificável pela necessidade de uma decisão que seja realmente justa. Foi-se o tempo — conforme anota o jurista Eduardo Couture —, em que todos os julgamentos tinham um caráter sacro e religioso, como se o juiz fosse expressão de uma divindade, refletindo nos seus vereditos a infalibilidade do deus representado. Juízes erram. Há que se corrigir os seus erros.

Se é verdade que algumas partes se utilizam de recursos para tornarem o processo mais lento, também é certo, na contraface dessa realidade, que para a grande maioria das pessoas a existência de um processo judicial é motivo de aflição, máxime no processo-crime, em que, se para culpados a demora do processo pode representar benefício temporário, para os inocentes — e mesmo para culpados recolhidos em estabelecimentos prisionais por tempo maior do que a pena que merecem —, representa grande tomento e angústia.

Não será eliminando recursos e suprimindo garantias da cidadania que se combaterá com eficiência a morosidade da Justiça. Que tal recrutar juízes e pessoal de apoio suficientes e incorporar toda tecnologia disponível nos serviços forenses?

Não se argumente com decisões em massa e padronizadas, eis que sentenças não são automóveis que podem, desde Henry Ford, ser fabricados em série. Direito está muito longe de ser ciência exata e cartesiana. Posições momentaneamente dominantes existem e sempre existirão, mas não podem ser vistas como dogmas eternos e imutáveis. A liberdade de atacar a “jurisprudência dominante” é expressão de uma sociedade moderna, plural e democrática, além de constituir sinergia para a evolução do pensamento jurídico e dos valores sociais. Toda unanimidade é burra, dizia Nelson Rodrigues. Sagrado, pois, deve ser o direito de se questionarem transitórios clichês judiciários.

Aos recursos e aos advogados não pode ser mandada a conta do atraso nas decisões do Judiciário. O tema é mais complexo do que sugere essa visão simplista e de superfície, que se exercita mais a partir da burocracia interna dos tribunais do que da perspectiva dos direitos e garantias dos cidadãos, que são, afinal, para quem a Justiça existe.

Oportuna aqui a advertência de Calamandrei: estejam certos de que, mesmo o magistrado mais avesso aos recursos, e crítico do incansável trabalho dos advogados mais combativos, no dia em que estiver envolvido em um conflito próprio, buscará exatamente aquele profissional que, por intensa combatividade, é o que mais utiliza de todos os meios recursos processuais previstos na lei para buscar realizar a efetiva Justiça.

Artigo publicado no site CONJUR em 03.05.2011

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O Direito de ser deixado em paz

Em 1890, dois juristas americanos, Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis, publicaram um estudo considerado um marco na história do direito moderno, ao sustentarem que novos inventos e métodos comerciais reclamavam o surgimento de um novo direito fundamental do cidadão, construído a partir de direitos clássicos de proteção à pessoa e à propriedade, e que eles denominaram direito à privacidade, correspondente, nas palavras do juiz americano Cooley, ao direito de ser deixado em paz.

Passados poucos mais de 100 anos daquela publicação, vivemos hoje também a necessidade da criação de um novo direito do cidadão, curiosamente nascido a partir daquele direito à privacidade, que acabou consagrado no último século, fundado nos mesmas razões de desenvolvimento tecnológico e de métodos comerciais, agora por causa da informática e da telemática, e pautado naquela mesma expressão singela mas marcante, de que nos deixem em paz, direito esse que se constitui na proteção do cidadão em face do tratamento automatizado de seus dados – ou, nas palavras dos espanhóis, direito à autodeterminação informativa.

O recolhimento de informações privadas pelos sistemas automatizados, especialmente os que empregam a telemática, já em lay-out apropriado para futuro tratamento, não raras vezes sem que sequer saiba o cidadão que seus dados estão sendo compilados; a troca de dessas informações por órgãos públicos ou por empresas, ampliando significativamente o volume de dados; a capacidade de armazenamento de milhões e milhões de informações; a contínua diminuição dos custos de geração, transmissão, arquivamento e tratamento de dados; e, finalmente, os resultados cada vez mais complexos desses tratamentos, com efetivo risco de violação à privacidade e à intimidade dos cidadãos, tornam imperiosa a consagração, no Brasil, desse novo direito.

A relevância da matéria é de tal ordem que alguns países, como Portugal e Espanha, já a elevaram a nível constitucional, assegurando aos seus cidadãos proteção em face do tratamento automatizado de seus dados. A própria Comunidade Européia instituiu esse direito há alguns anos por meio da Diretiva 95/46/CE, consagrando princípios como da transparência do processo de coleta e de finalidade de dados privados, e da segurança, estabelecendo que quem manter banco com dados privados de terceiros é responsável por eventual violação, inclusive quanto ao acesso por pessoas não autorizadas.

O Brasil consagrou em sua Constituição de 1988 o habeas data, que visa assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público, definido estes, pela Lei nº 9.507/97, como todo registro ou banco de dados contendo informações que sejam ou que possam ser transmitidas a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade produtora ou depositária das informações. Também é função do habeas data permitir a retificação de dados, quando o cidadão não prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo.

Esse dispositivo significou um grande avanço no trato de informações do cidadão, considerando especialmente sua motivação, insurgindo-se contra os arquivos ocultos do período militar. Mas, agora, com o avanço tecnológico das duas últimas décadas, a mudança do perfil dos computadores e dos sistemas, a chegada das trocas eletrônicas de dados e, finalmente, da internet, reclamam sejam estabelecidos princípios mais efetivos.

Por outro lado, o art. 43 do Código de Defesa do Consumidor trouxe inovações importantes, estabelecendo que a abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deve ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.

O problema, no entanto, nem está apenas na abertura de uma base de dados, nem se restringe a relações de consumo. Deve o cidadão saber para que esses dados estão sendo compilados e a que tipo de tratamento estarão sujeitos. Deve igualmente ter o direito de decidir se poderão ou não ser transferidos a terceiros. E a própria espécie de informação deve ser controlada, estabelecendo-se, por exemplo, limites a solicitação de informações sobre credo, raça ou preferência sexual.

O tratamento informatizado dessas informações também precisa ser controlado. Imagine-se, por exemplo, as possibilidades de tratamento de dados compilados por um supermercado com banco gerado a partir de cada compra do consumidor, identificado através de cartões fidelidade. Esse banco de dados, sob tratamento eletrônico adequado, é capaz, por exemplo, de espelhar o comportamento do consumidor dentro de sua própria casa. Aliás, também as empresas passam a correr sérios riscos com esses bancos de dados, na medida em que, por exemplo, permitem que informações sobre seus consumidores possam ser cedidas a uma empresa concorrente para promover campanha individualizada sobre os mesmos.

Não são apenas os bancos de dados comerciais que merecem preocupação. Os bancos de dados de órgãos públicos igualmente reclamam controle, quer em relação ao seu conteúdo e alcance, quer em relação à sua utilização, diante dos riscos efetivos que apresentam não apenas sobre determinado cidadão, mas também sobre toda a coletividade.

Já é hora do Brasil passar a tratar a questão da privacidade do cidadão em face do tratamento automatizado de dados com responsabilidade, como têm feito há anos os países da Comunidade Européia, pelos riscos que isto representa a cada cidadão, e ao país como um todo, seja em relação às empresas, seja em relação ao próprio Governo.

Este artigo foi publicado originalmente no Jornal Gazeta Mercantil, em 14.02.2001, pág. A3. e foi republicado neste blog em razão da recente notícia de consulta pública do Ministério da Justiça sobre diretrizes para lei de proteção de dados pessoais.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Quinto Constitucional e Judiciário Democrático

A Constituição do Brasil reserva uma parcela da composição de todos tribunais brasileiros, salvo o Supremo Tribunal Federal, a membros do Ministério Público e da Advocacia, indicados em lista sêxtupla formada pelos órgãos representativos das respectivas classes, encaminhada ao Tribunal correspondente, que dela extrai uma lista tríplice e a remete, para nomeação de um de seus integrantes, ao Governador ou ao Presidente da República, se o Tribunal for federal. No caso dos Tribunais de segundo grau, essa parcela corresponde a um quinto dos membros da respectiva Corte, daí a razão desse instituto ser chamado de “quinto constitucional”.

Uma parte da magistratura passou a combater a existência do quinto constitucional. As alegações são diversas, como de que haveria indicações pretensamente políticas, de que pessoas jovens demais ou idosas demais compõem listas, ou de não ser justo que alguns juízes de carreira passem a vida inteira na primeira instância, por não existirem vagas nos Tribunais, pela existência do quinto do MP e da advocacia. Esses pretensos argumentos sucumbem à mais elementar análise. A OAB, por exemplo, faz ampla divulgação da abertura de inscrições ao quinto constitucional, proíbe que concorra quem ocupe cargo demissível ad nutum (nomeação) ou que seja dirigente ou conselheiro da entidade, para evitar que questões políticas interfiram na indicação, analisa minuciosamente a documentação dos inscritos, publica seus nomes para eventuais impugnações e suas sessões de arguição dos candidatos e votação das listas são públicas.

A idade mínima e máxima para concorrer é definida na Constituição Brasileira. E sempre haverá um número menor de vagas nos Tribunais do que o número total de juízes de carreira, naturalmente impedindo que todos cheguem ao topo, o que afasta esse argumento tão somente corporativista, que já peca pelo seu pressuposto: as carreiras públicas não pertencem aos funcionários públicos, mas à sociedade, a quem aqueles devem servir. Essa corrente, entretanto, tem contaminado diversos Tribunais de todo o país, e muitos passaram a criar obstáculos diversos para suas aprovações, inclusive definindo quóruns que, não atingidos, justificariam devoluções de listas, ou pretendendo promover arguições dos candidatos, o que equivaleria a juízes aposentados prestarem exame de ordem para se inscreverem na OAB.

O quinto constitucional é a grande fórmula encontrada para democratizar a Justiça brasileira, a fazer com que os Tribunais sejam formados não apenas por juízes de carreira, mas também por representantes das demais classes jurídicas eleitos por seus pares, levando às Cortes experiências profissionais que constituem visões diferentes da Justiça, trazendo benefício à evolução do direito, à saudável renovação de posturas e entendimentos, e mitigando, ademais, o corporativismo inato a qualquer carreira. E como nos Tribunais os julgamentos são colegiados, a participação, na turma julgadora, de profissionais que tiveram outras experiências profissionais sempre pode contribuir para o aperfeiçoamento e a renovação do Direito.

Querer discutir o quinto constitucional é aceitável: discussões dessa natureza são próprias dos sistemas democráticos. Descumpri-lo, contudo, é inadmissível, ainda mais em se tratando do próprio Poder Judiciário, que deveria zelar pela imperativa observância das normas constitucionais e da ordem jurídica. E a discussão, quando houver, deve ser feita no foro competente, o Congresso Nacional, onde as opiniões, contrárias e favoráveis, certamente serão apresentadas, e onde o debate poderá ser estabelecido de forma ampla, incluindo outros possíveis instrumentos de democratização na composição do Judiciário e melhoria da prestação da atividade jurisdicional, inclusive avaliando-se adequadamente institutos tradicionais, como o da vitaliciedade, que permite que não apenas juízes meritórios permaneçam na magistratura e ascendam às Cortes, no mínimo, por antiguidade, mas também os maus juízes, que, quando afastados, acabam recebendo o “prêmio” da disponibilidade ou da aposentadoria compulsória.

É decepcionante ver a Justiça descumprir preceito constitucional, buscando a todo o custo impedir as nomeações pelo quinto, mas é revoltante perceber que essas crescentes iniciativas objetivam aniquilar esse legítimo, salutar e democrático instrumento de arejamento do Judiciário.